quarta-feira, 24 de julho de 2019

A pseudociência chega à Odontologia

Documentário que foi exibido pela Netflix faz relação falaciosa entre tratamento de canal e doenças sistêmicas graves
Muito tem se discutido no meio odontológico a respeito de um programa na Netflix, denominado Root Cause (A Raiz do Problema, como foi traduzido pela provedora de serviços streaming Netflix), indicando uma certa relação entre doenças sistêmicas graves e a Endodontia, especialidade que estuda a polpa e a raiz dentária, e inclui entre suas práticas o tratamento de canal.
Após esse programa na Netflix, há uma crescente preocupação entre os dentistas para saber como melhor explicar aos pacientes, que tal programa se trata de pseudociência.

Somente nos Estados Unidos, 25 milhões de tratamentos endodônticos são realizados por ano com segurança e eficácia. Se fosse verdade que o tratamento de canais radiculares causa doenças como o câncer, haveria muito mais informações disponíveis em publicações de impacto científico, e a endodontia não seria a opção terapêutica regularizada legal e cientificamente para salvar os dentes.
Por exemplo, não existem evidências científicas válidas ligando doença como câncer, a dentes com canal radicular tratado. Dados apresentados no documentário da Netflix mostrando que “97% dos pacientes com câncer passaram anteriormente por um tratamento de canal radicular” não foram publicados em nenhum periódico de impacto científico.
O tratamento de canal
Em dentes com inflamação pulpar irreversível ou necrose (morte) da polpa – o que coloquialmente chamamos de “nervo” – a primeira opção de tratamento para salvar o dente é a Endodontia. No caso de um tratamento endodôntico (tratamento de canal) mal realizado em que não se obteve o controle mínimo da infecção no sistema de canais radiculares, a opção de tratamento é a re-endodontia, que normalmente é efetuada por um especialista na área.
Quando esse procedimento também não é bem sucedido e o paciente segue com dor ou visualiza-se no Raio-X uma possível lesão, recomenda-se a cirurgia parendodôntica, que consiste na remoção cirúrgica do ápice dental. Somente nos casos de insucesso dessas cirurgias é que o dente é indicado para extração. A extração é um procedimento traumático, conhecido por causar uma incidência significativamente maior de bactérias entrando na corrente sanguínea.
Ressalta-se, porém, que em ações como escovar os dentes, pentear o cabelo, beijar ou tomar banho também ocorre uma bacteremia transitória (ou seja, a entrada de bactérias na corrente sanguínea) semelhante à da extração.
Em um organismo são, com a ativação do sistema imunológico, em poucos minutos esse problema se resolve. Portanto verifica-se que antes de se extrair um dente, existem vários tratamentos eficazes para preservar a contento o dente. Você não cortaria sua mão se tivesse quebrado apenas um dedo e parte dele estivesse necrosado. Na maioria dos casos, o tratamento endodôntico permite que os pacientes mantenham seus dentes naturais por toda a vida.
Ausência de casualidade e pseudociência
A pseudociência pode ser baseada em livros pessoais, opiniões ou exemplos clínicos com pequeno número de pacientes avaliados. No caso do tema abordado pelo documentário da Netflix, não há causalidade entre canais radiculares e câncer: a experiência de um único indivíduo não significa que exista uma relação de causa e efeito. Fosse assim, poderia se considerar a água como causadora de câncer, uma vez que todos os pacientes com câncer tomam água regularmente.
As alegações de que os tratamentos de canais radiculares não são seguros se baseiam em pesquisas realizadas há mais de 100 anos, e há muito desmascaradas. A literatura científica da Associação Médica Norte Americana (AMA) relata que o risco de um paciente desenvolver câncer após tratamento endodôntico diminui em quase metade dos casos. É protocolar realizar-se as endodontias necessárias em pacientes antes de iniciarem tratamento específico para câncer de cabeça e pescoço.
Mais ainda, com os avanços em medicina e odontologia, novas técnicas e tecnologias tornaram o tratamento endodôntico o tratamento mais previsível e bem sucedido do que nunca. Hoje, imagens digitais, tomografia, isolamento absoluto, localizadores foraminais eletrônicos, instrumentos mecanizados com cinemática rotatória e oscilatória, soluções irrigadoras com alto potencial desinfetante, ultrassonografia, medicações entre sessão, materiais e técnicas obturadoras tridimensionais e reconstrução coronária efetiva, contribuem para garantir o sucesso clínico, radiográfico, tomográfico e legal do tratamento do canal radicular.
Nada parece, sente ou funciona como seu dente natural. Portanto, ele deve ser salvo sempre que possível. O tratamento do sistema de canais radiculares, juntamente com a restauração adequada da coroa, é geralmente mais rápido e menos dispendioso do que a cirurgia de extração e implante.
Existe também literatura pertinente à associação entre tratamento de canais radiculares e Doença da Vaca Louca e o Mal de Alzheimer, porém nessas publicações nada de conclusivo existe avalizando a relação, além de o número de espécimes avaliados ser extremamente pequeno. Dessa forma, qualquer especulação quanto ao tratamento endodôntico ser deletério, não passa de pseudociência alarmante.
Fora do ar
Em fevereiro de 2019, após uma série de manifestações de especialistas, o documentário Root Cause foi removido do portal Netflix, ficando indisponível no Brasil e no exterior.
Renato de Toledo Leonardi
Unespciência

Nenhum comentário:

Postar um comentário